DISCURSO SOBRE A QUESTÃO UCRANIANA! - PARTE I
(Renato L. R. Marques, Interesse Nacional, 17) A invasão da Ucrânia pela Rússia completou um ano em 24 de fevereiro passado, tempo suficiente para que decantasse o arsenal de argumentos expostos em sucessivas ocasiões pelo presidente Vladimir Putin para “justificar” o ataque ao país vizinho.
O previsível seria assim que causas como “a proteção dos russos étnicos”, habitantes das ricas províncias no leste da Ucrânia, alegadamente impossibilitados de se comunicar no idioma russo, por constrangimentos impostos pelo “regime nazista” de Kiev, tivessem sido desmascaradas, posto que as áreas atacadas extrapolaram em muito aquelas províncias. Além disso, o grau de violência praticado pelas tropas invasoras é, no mínimo, desproporcional e incompatível com a promoção desinteressada da “livre prática do idioma de Tolstoi, Tchecov e Dostoiesvsky”, voltado que esteve/está para destruir centros militares, civis e administrativos, fábricas, escolas e hospitais.
Da mesma forma, o mantra da promessa ocidental de “não expandir a Otan em direção ao Leste”, defendido com o prestígio e a aura intelectual de pensadores como Kissinger (na versão K.22, revista no corrente ano) e Mearsheimer, não resiste ao teste dos desmentidos de Gorbachev nem à lógica da convivência pacífica e da crescente cooperação com a Rússia, de que é testemunho a interdependência energética alcançada entre a Europa e a Rússia, desenhada com a ativa participação da Alemanha, em um esquema de inquestionável racionalidade econômica.
Assim, o que resta é a constatação pura e simples de que o Kremlin está empenhado, valendo-se do uso unilateral da força, em uma agressão armada voltada para a anexação de partes ou do todo do território de outro Estado independente e soberano. Estado esse que, no entender de Putin, nunca teve existência própria! Em geral, essa caracterização primária seria suficiente para moldar o juízo dos observadores sobre o caráter da guerra, a responsabilidade pelas ações bélicas e, por fim, a indigitação das “vítimas” e dos “culpados”.
Em geral, mas nem sempre. Afinal permeiam esses julgamentos avaliações que tergiversam sobre a realidade ou se sustentam em teses que negam o caráter expansionista (em linguagem mais reta, “imperialista”) da guerra, mesmo apesar da proliferação de discursos candidamente transparentes de Putin nesse sentido e da cobertura ao vivo, pela mídia internacional, das barbáries perpetradas pelas tropas russas e mercenárias. Dualidade que expõe à luz do dia a tênue fronteira entre a propalada adesão de muitos às regras do direito internacional, aos princípios da Carta das Nações Unidas e a íntima convivência, tolerante e permissiva, dos mesmos com a “operação militar especial” empreendida pela Rússia, que só foge ao estilo habitual de “terra arrasada” — de que são exemplos Grozni (na Chechênia), Aleppo (na Síria), e Mariupol (na Ucrânia) –, porque Putin alimenta a visão de um mundo eslavo mitológico, sob o comando de Moscou, em que Kiev representa um papel central enquanto origem e Olimpo de seus deuses ancestrais. Daí o sentido de missão no cumprimento do que considera o “destino manifesto” da Rússia.
A campanha de desinformação sobre a guerra tem assim o poder de desacreditar versões de toda ordem, em completa contradição com o nível de dados disponíveis em um mundo globalizado e digital. São vítimas dessa empreitada desde o noticiário sobre o deslocamento de tropas no teatro de guerra (algo compreensível, no contexto de um confronto dinâmico, onde posições são ocupadas e recuperadas ao sabor das ofensivas realizadas e dos êxitos eventualmente alcançados pelos dois lados) até o registro inquestionável de “crimes contra a humanidade” (como o massacre de Bucha, acusado, com requintes de crueldade e sadismo, de ter sido uma encenação teatral pelas forças ucranianas).
Da mesma forma, a condenação por muitos setores da imposição de sanções econômicas e financeiras à Rússia, apesar de ter destruído 80% da siderurgia do país invadido e igual proporção de sua base mineira (para não mencionar a infraestrutura elétrica e outros ativos estratégicos), desconsidera o impacto das “sanções reversas” impostas pela Rússia, tão ou mais danosas ao bem estar de populações alheias ao jogo geopolítico russo, responsável pela desestabilização dos mercados globais nos campos energético e alimentar e pela inflação daí decorrentes. Em que pese esse absurdo “choque de realidades”, alguns pontos podem ser alinhavados como tendo emergido ao longo desse primeiro ano de um conflito que alguns se recusam a chamar pelo nome, contra um país que teoricamente nunca existiu:
A sabedoria convencional militar admite que o maior número de baixas em um conflito ocorre, pelo menos em um primeiro momento, nas fileiras do país atacante, que corre mais riscos e se expõe mais na ofensiva do que o país que se defende. No caso em tela, esse resultado teria sido acentuado pela configuração geográfica, que impôs às forças invasoras russas a progressão de seus tanques no terreno plano e descoberto das estepes ucranianas, tornando-os alvos fáceis para a artilharia das pequenas unidades móveis do sistema de defesa ucraniano. A questão não deveria, portanto, contaminar a credibilidade das ações em curso no teatro de operações, mesmo que as cifras oficiais não sejam de todo críveis, como não são, pelos óbvios problemas de contagem das baixas sofridas, pela cautela em preservar o moral da população ou por motivos propagandísticos;
As províncias ocupadas ou anexadas até agora pela Rússia transcendem em muito sua condição de “corredor” na direção da península da Crimeia, aspecto em geral negligenciado. Nelas estão concentrados os principais centros mineiros e industriais do país (ferro, carvão, siderúrgicas, indústria espacial, fabricantes de grandes turbinas), além de usinas de eletricidade, represas (como a localizada em Kherson, que é a principal fonte de água potável para a Crimeia) e portos (como Mariupol, cuja conquista permitiu tornar o Mar de Azov um “lago russo”). A guerra de conquista desenvolvida pela Rússia, mesmo se limitada ao espaço atualmente sob seu controle, inflige portanto danos irremediáveis à economia da Ucrânia. Do ponto de vista político, a disseminação do medo provocado pelos bombardeios sistemáticos e indiscriminados em todo o país, o êxodo de parcela significativa de sua população (em geral, jovens), bem como a devastação imposta à sua infraestrutura, comprometem seu futuro e condena a Ucrânia a um papel muito aquém das aspirações que sua base produtiva e o dinamismo de sua economia lhe prenunciavam;
No âmbito regional, o ataque russo à Ucrânia estimulou uma união sem precedentes em torno da Otan, tida como cara e inoperante na visão arrogante e amadorística de Trump, mas agora fortalecida como o grande “guarda-chuva” contra eventuais veleidades russas de retomada de sua “área de influência” (caso da Europa Oriental e da Ásia Central) e de sua “grandeza imperial” (caso da Ucrânia e de seu vizinho bielorusso). Sintomáticos desses receios foram o virtual abandono alemão de sua postura pacifista do pós-guerra e os pedidos de ingresso na Otan de países tradicionalmente neutros, como a Finlândia e a Suécia, impressionados pela sem cerimônia com que a Rússia se movimenta na região, na esteira das intervenções na Ossétia do Sul e na Abecásia (em 2008, que resultou na independência dessas províncias da Geórgia), da anexação da Crimeia (em 2014) e agora de uma extensa faixa dos territórios do leste da Ucrânia (Lugansk, Donestk, Kherson e Zaporija). Campanhas que foram, em todos os casos, precedidas de sinais inequívocos para os leitores mais atentos (ou menos alinhados ao antiamericanismo praticante). Esses últimos preferem reduzir a ação dos EUA na Ucrânia a uma canhestra manobra para venda de gás liquefeito à Europa ou a uma conspiração neoconservadora voltada para a destruição da Rússia, mesmo que seja a China, no raro consenso entre democratas e republicanos nos EUA, o novo “inimigo público número um”. Da mesma forma, os frequentes anúncios de um possível recurso às armas nucleares táticas já cumprem sua função de acostumar a opinião pública mundial (em um processo de “habituação”) à ideia de que um novo paradigma estratégico está se consolidando. Nesse novo cenário, o código de conduta prevalecente desde o período soviético, caracterizado pela moderação, como forma de evitar a proliferação nuclear, fica superado. O uso desses artefatos (ou sua ameaça verossímil de uso), até então relegado aos filmes de James Bond, como intimidação ou chantagem, passa a ser uma opção “válida”, caso a guerra convencional tome rumos indesejáveis, ou seja, contrários aos desígnios do Kremlin;
A belicosidade exibida pela Rússia parece menos o resultado de um sentimento de insegurança pela proximidade da Otan de suas fronteiras e mais a busca de reafirmação de uma grande potência militar e indiscutível player nuclear, relegada ao segundo plano internacional pelo mau funcionamento de suas instituições políticas (constrangidas pela excessiva concentração de poder no chefe do Executivo e por restrições ao pleno exercício das liberdades civis e de expressão), pela virtual redução de sua economia ao setor de exportação de commodities (petróleo e gás), pela distribuição desigual do desenvolvimento dentro da Federação, entre outras mazelas. Sobrou-lhe assim alinhar-se com a China na condição subalterna de “aliado ilimitado” e fazer uma demonstração de força na direção da Europa, que Putin vê como um continente “fraco, dividido, decadente, consumista e destituído de valores”. Praticamente isolado no cenário internacional, Putin se encontra cada vez mais na desconfortável posição de, apesar de ter o dedo no gatilho de 6.000 ogivas nucleares, ainda assim ter que contar com manifestações de apoio e solidariedade de países de menor expressão nas Nações Unidas e de compensar as sanções econômicas vigentes com o aumento das vendas para seus parceiros na China, nos BRICS e no Sul Global, onde ainda desfruta de alguma popularidade. Isso graças a seu discurso em favor da “multipolaridade” e à sua aberta contestação da “ditadura dos critérios éticos” (implícitos no conceito e no exercício da “democracia”), que considera uma imposição dos “interesses escusos” dos EUA e de seus aliados atlânticos, na esteira da dissolução da URSS. Mais honesto seria admitir que seu modelo político autoritário e econômico oligárquico não é atrativo o suficiente para entusiasmar as multidões (pelo menos na Ucrânia);
No âmbito mundial, o ataque russo não provocado à Ucrânia, estimula a corrida armamentista, na medida em que reafirma o uso da força como instrumento de consecução do interesse nacional. Nessas condições emite uma mensagem clara de que a única forma de se precaver contra invasões e outras ameaças externas é se nuclearizar. “Legitimadas” pela bandeira da “multipolaridade” e pela disponibilidade de armamentos mais letais, nações “oportunistas” poderão se sentir tentadas a escalar a guerra até o nível que presumem ser “tolerável” para os países mais estáveis, conservadores e afeitos ao status quo (como boa parte das democracias ocidentais desenvolvidas). A desinibição com que a Coreia do Norte “exercita seus músculos” é testemunho desse comportamento, que não creio seja compatível com os melhores interesses da Rússia. A própria China, elevada à condição ambígua de “aliada sem limites”, tem que equilibrar as vantagens de ter seu flanco ocidental resguardado (o que a libera para focar sua atenção no Pacífico e nos EUA) e o incômodo de ter um parceiro tão “dinâmico e agressivo”, atuando contra a estabilidade de seus valiosos mercados na Europa. Os BRICS, “constrangidos” a algum tipo de apoio à Rússia (por dependerem de seus fornecimentos de armas, caso da Índia, ou de fertilizantes, caso do Brasil), tiveram sua aura de “campeões dos emergentes” exposta à opinião pública mundial como um reduto de “democracias imperfeitas”, por força do autoritarismo na Rússia e na China, da persistência do regime de castas na Índia, do legado do apartheid na África do Sul e das ameaças à estabilidade institucional no Brasil. De quebra, o poder de veto da Rússia no Conselho de Segurança fez com que as deliberações na Assembleia Geral ganhassem novo peso, o que certamente foi um resultado não pretendido pelo Kremlin.
Acumulam-se assim pressões, legítimas e/ou interessadas, no estabelecimento de um armistício, eufemisticamente chamado de “negociações de paz”. Essas propostas vão contra os resultados de pesquisas divulgadas durante a última reunião da Conferência de Segurança de Munique 2023, em fevereiro do corrente ano, que mostram que entre 89% e 95% dos ucranianos se dispõem a “lutar até a morte”, mesmo que continuem os bombardeios destinados a tornar as cidades inabitáveis e se bombas nucleares forem utilizadas, e que 93% exigiriam a saída de todas as tropas do território ucraniano (inclusive da Crimeia).
Créditos Ex-Blog do Cesar Maia |
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